ESCRITA CRIATIVA: LIÇÃO N.º 1 (POESIA)

Desde que os poetas trocaram a música pela metáfora, contra a recomendação de Verlaine,  toda a gente pode produzir poesia pós-experimental. E da boa. A primeira noção a assimilar é que o metaforismo em voga não transmite propriamente ideias e as composições raro se organizam em torno de uma mensagem.
Aviso prévio à turma: nada de estudar as leis da metrificação, da elisão rítmica ou da partição acentual. Esta cerrada matéria, sobre ser perda de tempo, pode dar cabo de uma carreira.
Assim, o poeta deve começar por seleccionar um conjunto de palavras, as suas palavras, uma espécie de vocabulário próprio que defina o seu registo. Por exemplo: espaço, árvore, voz, pedra, memória, murmúrio, vórtice, folhagem, frescura, azul, raiz, imagem, água, construção, nuvem, corpo. Dez a vinte palavras chegam e sobram para apontar às antologias contemporâneas. Como veremos adiante, todos os poemas do livro vão girar à volta dos vocábulos da lista.
A seguir, é preciso ligar as palavras seleccionadas de qualquer forma ou nem sequer as ligar mas aproximar apenas. Nunca, porém, no sentido comum ou corrente.
Aqui vai o início de um poema, com a lista de palavras mencionada:
 
A voz da pedra é nuvem
Construção do murmúrio no espaço
No vórtice da frescura onde a imagem treme
A água desta pedra na folhagem do azul
E a árvore do teu corpo na raiz da memória

Reparem que a ordem das palavras é secundária. O último verso, por exemplo, pode ser grafado de distintas maneiras: e a raiz do teu corpo na árvore da memória, ou e a memória do teu corpo na raiz da árvore, e assim por diante.
Há versos que podem transitar de um poema para outro sem deslustre. Se um esboço estiver a ficar comprido, extraem-se os versos demasiados, que se enxertam noutro poema.
Finalmente, após o lançamento, a opinião impressa há-de escrever qualquer coisa deste feitio: "Revelação do ano, a essência da sua poesia manifesta-se numa metalinguagem de herméticas metáforas, nimbadas de sensualidade expressiva. A liberdade na moderna linguagem poética exerce-se num espaço de arbitrariedade e pluralismo. A univocidade é asséptica, mas na sua poesia retorna a si mesma, à plenitude do significante". Ou seja, o crítico também não entendeu patavina. E isto, meus amigos, é essencial: que o público, a crítica e o próprio autor permaneçam nas trevas do entendimento é meio caminho andado para a glória literária. O resto é cunhas e contactos.

4 comentários :

  1. Então, Sr. Professor, e que tal esta poesia experimental? Saí-me bem?

    "Agora
    ou
    logo
    ____hoje!! HOJE!
    Homem
    _____________________LEME
    O céu o céu o céu éu éu
    Béu
    ___________CÃO

    Estou a precisar de um cão!"

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  2. Olhe, deliciei-me a ler este seu escrito logo pela manhã, o que me pôs d'imediato bem disposta. A fina ironia que ele encerra é do melhor. E então a análise/dissecação que faz ao poema (quintilha) seleccionado é de rir e chorar por mais. Parabéns.
    Maria

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