Alcides era um velho pastor beirão. Desde
que enviuvara, havia dez anos, vivia acompanhado de Moreno, um jumento fiel. Dez
anos assim. Alcides e o burro, o burro e Alcides. Adoravam-se. Fora amor à
primeira vista. O pastor gostava de rememorar o dia em que se encontraram um
com o outro — e os dois com a vida. O animal retribuía-lhe o afecto. Lembrava-se
embevecido de que Alcides, na feira de gado, o distinguira no meio de um
regimento de azémolas e lhe dera uma palmada rija no lombo (Belo animal! Quanto
custa o jerico?) Ah!... A mão suave de Alcides. Nem comparação tinha com a de
Tadeu, o vendedor, que se lhe escanchava em cima e o chicoteava continuamente
com a soga da rabeira. Que diferença! Por Alcides, nem sabia o que era um estábulo. Nunca lhe batia: o castigo
era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeição mal-humorada.
Entendiam-se pelo olhar, como qualquer casal moderno e de boas avenças.
Um ano passou, outros anos passaram. E
entre os dois a paixão foi crescendo — a ponto de se tornarem inseparáveis. Habitavam
a mesma casa, dividiam a mesma mesa, dormiam no mesmo leito. E isto se
bacorejava aldeia fora, nas conversas intriguistas dos vizinhos e das beatas:
Alcides e o burro viviam em união de facto. Por isso, e muito justamente, o
pastor lamuriava-se de não poder deduzir os gastos de Moreno, alimentado a pão-de-ló,
nas contas anuais do IRS. Tal discriminação indignava-o. E indignado ficou
também o burro quando internaram o dono no hospital da
vila (maldita cirrose…) e lhe interditaram — a ele, bicho fidelíssimo — o acesso
à enfermaria. Ao pobre animal, doía-lhe no peito que não tivesse os mesmos
direitos de visita que o marido ou a mulher de outro doente. Dias depois, como
o pastor morresse, chegou de Lisboa uma parentela ignota que, a dois tempos,
tratou do funeral e das partilhas — sem que o bicho amantíssimo pudesse herdar
o casebre ou a horta. Seria o mínimo,
depois de uma vida a dois.
Errou o jumento, choroso, pelas ruelas
da terra, alijando a dor da perda. Dobaram-se os meses, mas nunca conseguiu
voltar a casa. Olhou com indiferença as luzes festivas e um burro de gesso no presépio da
praça. Tresnoitou-se de lameiro em
lameiro, contemplando as estrelas — companheiras leais dos solitários. Não passou
fome, tanto que se alimentava dos tojos que despontavam no monte, mas definhou
consideravelmente. Quando entrou o Inverno, frio e chuvoso, Moreno estava um
palito. Na noite de Natal, apareceu morto no adro da igreja. Ainda agora
se diz na aldeia que morreu de amor.
Meu caro, há uns anos assisti em São Paulo à peça “A cabra ou quem é Sylvia?, baseada numa obra de Edward Albee. Conheces? Foi inspiração para este conto?
ResponderEliminarÉ a primeira vez que ouço falar de Edward Albee.
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