ENTREVISTA COM EÇA DE QUEIRÓS


Que o traz de volta a Lisboa?
De cem em cem anos, gosto de passar por cá. É o bastante, de cem em cem anos, porque isto está sempre tudo na mesma. Gosto de passear pelo Chiado e admirar, tão comovido como o Cruges, o arvoredo que ainda subsiste, os meus cafés, as minhas ruas, os meus restaurantes.
Como encara a literatura portuguesa contemporânea?
Encaro-a de soslaio. O senhor é crítico?
Não, felizmente não sou crítico: sou criticável. Mas olhe que críticos de Eça é o que não falta por aí...
Eu sei. Ando na peugada de dois ou três que escrevem os maiores disparates sobre mim e a minha obra. Quero dar-lhes umas bengaladas. O senhor saberá porventura onde mora a D. Maria Filomena Mónica?
Não sei.
E o Carlos Reis?
Também não. Lamento.
Não lamenta mais do que eu…
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve: o Ega, de Os Maias, é o Eça?
Que disparate! Onde colheu tal ideia estapafúrdia? O João da Ega nem as Memórias de Um Átomo conseguiu terminar. Eu, felizmente, deixei obra publicada. Se alguma das minhas personagens tem muito do que eu fui e bastante do que eu desejaria ter sido é o Gonçalo Mendes Ramires. Logo no início da Ilustre Casa vêmo-lo em torturas de escritor na velha livraria da Torre, clara e larga. Mais adiante, aí o temos afeiçoado às ceias e bacalhoadas festivas, que eu tanto apreciei e tanto mal me fizeram. O pobre era obrigado a recorrer à água alcalina, que eu tive de beber toda a vida. Quando o Gonçalo, sempre à court d’argent, combina o arrendamento da Torre com o tremendo José Casco e, depois, sucumbindo à tentação de mais dinheiro, acaba por arrendá-la ao abastado Pereira da Riosa, acredite que aí temos um belo exemplo de como eu reagiria em situação idêntica reflexo natural das horrendas angústias financeiras que me atormentaram algumas vezes. É certo que o João Gouveia aparece no fim do livro com aquele estúpida tirada em que compara o Gonçalo a Portugal. Foi o bastante para a crítica fantasiar sobre o significado alegórico de cada palavra e gesto do fidalgo. Se o Gonçalo tem feições retintamente portuguesas é porque eu também as tenho de facto. Foi uma estupidez, aquele final.
Também não foi muito inteligente, porque inverosímil, armar de repente em colono africano um senhor que padecia do fígado e tinha de recorrer com frequência a sais de frutos e água de Vidago.
Tem razão, meu caro amigo, tem mil vezes razão.
A sua galeria de personagens, contudo, é uma das mais notáveis, talvez mesmo a mais notável da ficção portuguesa. O Gonçalo Ramires, o Teodoro, o Jacinto, o Ega, o Dâmaso…
Ah, o Dâmaso… Era um grande patife! Mas olhe que muitas das figuras de hoje vestem pelo figurino do Dâmaso.
Prosseguindo na sua vasta galeria de personagens: o País está atulhado de Acácios, não acha?
Concordo consigo. Foi personagem ineficaz, o meu Conselheiro Acácio. Completamente ineficaz. Ninguém retirou dele ensinamento algum. Estes tipos estudaram-no, esmiuçaram-lhe o moral e o físico, as ideias e os gestos, mas de facto não reparam que é dele, sem tirar nem pôr, a seriedade compenetrada com que distribuem honras e títulos uns aos outros e a todo o momento. Nunca assistiu a uma cerimónia do 10 de Junho? Meus Deus, quantos comendadores! E todos de uma mediocridade rara. Há dias até um praticante do football foi condecorado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Acredite, o meu Acácio ao pé desta gente bota figura.
E vários políticos actuais parece serem a reprodução fiel do seu Alípio Abranhos…
O Conde d’Abranhos só foi publicado na década de 20 do século passado. O Ramalho Ortigão enviara anos antes de falecer o manuscrito da obra ao meu filho José Maria, que depois a reviu e mandou publicar. Dizia o meu filho, acertadamente, que o livro fora urdido pela imaginação do pai mas que, por aqueles tempos, três ou quatro décadas volvidas, a realidade se arriscava a ultrapassar a ficção. Por isso, apressou-se em editá-lo. Antes que fosse tarde. Escrito hoje, nem ficção seria!
Talvez fosse a biografia não autorizada de quantos sardanápalos infestam os ministérios e o Parlamento.
Talvez. O Parlamento, então, é local horroroso. Uma corja a linguajar politiquice. Tanta palavra despendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de água disparatados, para ficar sempre tudo igual. E o público, que vai ele fazer para as galerias? Não compreendo essas pessoas: uma multidão desocupada e ociosa, que não vai lá pelo gosto da política, nem pelos interesses patrióticos. Vai apenas para desfrutar os contendores, rir-se deles, apupá-los e, o que é pior, perverter-se e desmoralizar-se no contacto da corrupção. Vai ver a maledicência dilacerar as reputações, como as feras nos circos romanos dilaceravam os mártires.
Ou como os bons costumes são dilacerados nos seus romances, carregadinhos de vício, adultério e incesto.
Eu sei. Arrependo-me de ter mergulhado tão fundo no lodaçal realista. Pintei a Amélia, de O Crime do Padre Amaro, e a Luísa, de O Primo Basílio, com a paleta de cores que me chegava de França. Ficaram criaturas medíocres.
Por que razão nunca se aventurou nos domínios da poesia e do teatro?
Nunca tive talento poético. E quanto a teatro, embora haja tentado alguma coisa, é arte que em Portugal nunca se viu. Ontem como hoje, vai-se ao teatro passar um pouco a noite, vai-se para se poder dizer que se foi ou, quando há um drama pungente, para rir e se ficar de bom humor. Não há, nem nunca houve bons dramaturgos só maus tradutores. E desde logo moços que ficaram reprovados no exame de Francês, traduzem. Onde está vous põem V. Exa., e este esforço prodigioso de invenção consumiu em Portugal a força de várias gerações literárias. Além disso, a malta do teatro é toda bon chic, bon genre.
Verifico que continua a insistir nos francesismos.
Às vezes, é por blague (Lá está, mais um...) Mas, por dentro, acredite que sou um português de sete costados. Mais português do que muitos contemporâneos seus que, apesar de me criticarem os francesismos, ficaram em três ou quatro lustros completamente inglesados. Só falam de hardware e de software, fazendo os devidos backups; aplicam no rosto after shave, vestem sportswear e compram carros com airbag. Dizem-se marketeers, brokers e branch managers. Olhe que os cartões de visita do Dâmaso nunca chegaram a tanto!
Já leu o Acordo Ortográfico?
Não me irrite, meu caro amigo. Isso não me interessa para nada. Meia dúzia de académicos a babarem-se de vaidade e aí temos uma língua nova.
Como vê o futuro de Portugal?
O País também não me interessa. Isto sempre foi um sítio, nunca chegou a ser um País, muito menos uma Nação. Portugal, politicamente, não tem hoje lugar na civilização. Está desempregado. Vive de esmolas, de subsídios, de fundos chamados estruturais. Os nossos deputados europeus, em Estrasburgo, não têm nada para fazer, nem podem fazer nada. Entretêm-se a escrever blogues para não morrer de tédio e sensaboria. Como eu, outrora em Havana, em Newcastle, em Bristol, em Paris. Sobretudo em Paris, onde fiz uma vida, não direi de cenobita, mas de petit bourgeois retiré.
Perante um quadro tão pessimista, que recomenda às mais jovens gerações de Portugal?
Sigam o exemplo que eu e o Ramalho demos com As Farpas. No estado em que se encontra o País, os homens inteligentes não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele devem farpeá-lo. As Farpas foram isso mesmo: a pilhéria, a ironia, o epigrama, o ferro em brasa, o chicote postos ao serviço da revolução.  

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