A gente cria o costume e gosta mais
por costume que por outra coisa. Que outra coisa é que podia ser. Depois, a
gente afeiçoa-se, mas afeiçoa-se já doutra maneira, e são uns filhos grandes
que casam connosco.
Outros acham que a gente há-de gostar deles
por isto ou por aquilo. Ora! A gente nem sabe porque gosta […]
Sempre o mesmo homem, senhor juiz — o mesmo
homem todos os dias, com o mesmo corpo e a mesma maneira! Todas as noites,
senhor juiz, e na mesma cama — nem a cama muda ao menos. E aquilo ao fim de
tempo já não era viver, nem coisa que se parecesse — era uma coisa entre comer
para não ter fome e fazer o serviço da casa... Se os homem soubessem o que custa
a aturar! Se soubessem o nojo que a gente tem por eles cá dentro quando está
encostada a eles!
E eu, senhor juiz, não tinha outro
remédio senão matá-lo para estar bem com a minha consciência e com a Igreja.
Foi por isto, senhor juiz e senhores jurados,
que eu matei o meu marido.
[Fernando Pessoa, O Mendigo e Outros
Contos]
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