MÓNACO

 
Duas actividades enfeiam o Mónaco: a Fórmula 1 e o futebol. Teimo que o principado não tem vocação para corridas de automóveis e jogos de bola. E das vezes em que lá estive, essa certeza mais se me aferrou.
Largaram esta época o Leonardo Jardim e o Bernardo Silva para aquela nesga de terra na ourela marítima da França — e vão somando derrota por derrota. Aquilo nem espaço tem para um centro de estágios. Da república genebrina dizia Voltaire que, ao sacudir a cabeleira empoada, a salpicava toda; também no Mónaco uma lebre em poucos saltos faria a travessia das varandas de Monte Carlo, sobranceiras ao mar, a Beausoleil, o prolongamento francês do território. 
Recorta-se ademais em ferradura a costa monegasca. Outra razão que me impele a dizer que devia aquela gente dedicar-se antes ao hipismo, modalidade olímpica e aristocrática, que emparelha bem com iates e casinos. 
Faz falta ao principado um soberano como Alberto I, que reinou de 1889 a 1922. Um príncipe à antiga que governa com aprazimento e felicidade dos seus súbditos à laia dos tempos patriarcais. Foi um grande amigo de Portugal — e partilhava com o nosso D. Carlos a paixão do mar e das pesquisas oceanográficas.
Pôs a sua espada de jovem oficial ao serviço da França, na desastrada guerra franco-prussiana de 1870. Era culto, inteligente e escrevia bem. A arma do guerreiro e a toga do letrado andaram-lhe sobre os ombros sem cederem uma à outra. Tentou à outrance evitar a I Guerra Mundial, um desastre para o Velho Continente. Assumiu-se, enfim, europeu de mão cheia.
Está agora o território entregue ao rapazinho homónimo das revistas cor-de-rosa. E o clube, pior ainda: foi comprado por um mafioso russo. Meus caros Leonardo Jardim e Bernardo Silva: o aeroporto mais próximo fica em Nice.

ADVERTÊNCIA DE VERÃO

O meu conselho aos jovens candidatos a romancistas: antes de escrever livros, leiam pelo menos um.

LIVROS & MULHERES (XXII)

O BES EM TRÊS ACTOS


 
I.
 
A saga da família Espírito Santo dava uma belíssima fita. Conta a história oficial que o patriarca e fundador do grupo nasceu por 1850 em Lisboa, filho de pais incógnitos. Abandonado numa igreja, baptizaram-no de José, por ser o nome do pai de Cristo; de Maria, por ter sido Nossa Senhora a madrinha; do Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade; e finalmente de Silva, por motivos ainda não completamente explicados, mas talvez por ser um dos apelidos do progenitor. 
Existem documentos suficientes para estabelecer a filiação de José Maria do Espírito Santo Silva. O rapaz era filho de Simão da Silva Ferraz de Lima e Castro, Conde de Rendufe. Isto explica que Zezinho, filho de pais incógnitos, sem meios de fortuna, se tivesse estabelecido logo aos 19 anos como cambista na praça lisboeta. O conde, que entretanto morrera, deixou-lhe dinheiro bastante e umas cunhas aos amigos para que amparassem o rapaz enjeitado.

II.
 
A saga da família repete desde aí nos altos e baixos a vida do Conde de Rendufe. Esperto e essencialmente venal, familiarizado com o meio dos negócios, o conde granjeou grossa fortuna ao relacionar-se com todos os regimes.
Em 1823, quando D. Miguel estava por cima, Simão da Silva apoiou a Vilafrancada, o que lhe valeu ser nomeado Intendente-Geral da Polícia. Mas os defensores do trono e do altar sucumbiram. A onda liberal subverteu o Portugal velho. Derrancaram-se as almas com a invasão de francesias dissolventes, eivadoras de racionalismo e irreligiosidade. A juventude foi grimpando em conceitos novos, positivando-se em Comte e materializando-se em Büchner. Antes disso, já o Rendufe era liberal convicto.
Foi uma vez detido pelo risco de destruição de documentos comprometedores, tal como o seu trineto Ricardo Salgado. Foi noutra ocasião encarcerado sem culpa formada e sujeito a um fuzilamento simulado, tal como alguns dos seus bisnetos durante o PREC, em 1975.
 
III.
 
Rendufe enxergou cedo que, para singrar nos negócios em Portugal, é preciso meter a mão no Estado. Desembarcou no Mindelo com os liberais e fez-se eleger deputado e par do reino.
Pisou, como embaixador e ministro plenipotenciário, praticamente todos os países onde o Grupo Espírito Santo viria a desenvolver a sua actividade. Assinou tratados de comércio com o Reino da Saxónia. Trabalhou em Madrid, antes de ser nomeado para o Rio de Janeiro, no Império do Brasil. Foi Ministro de Portugal em Paris.
Em 1849, casou-se em Bruxelas com Emerencie de Boudry. Não lhe dava jeito nenhum — já barão a caminho de conde — perfilhar logo no ano seguinte um miúdo nascido dos amores clandestinos com uma lisboeta do Bairro Alto.
Está por descobrir a importância do Bairro Alto no desenvolvimento económico e financeiro do País. Fontes Pereira de Melo vivia lá, com sonhos de estradas e ferrovias. O Grupo Espírito Santo também nasceu ali, naquele dédalo de ruas estreitas e abafadiças, num colchão de palha, entre o labor dos carvoeiros e os pregões estridentes das varinas.

PRAÇA DA REVOLUÇÃO


Os turcos revoltaram-se na Praça Taksim, em Istambul. Os egípcios na Praça Tahrir, no Cairo. E chegou agora a vez dos ucranianos, que fazem a revolução na Praça da Independência, em Kiev.
As sublevações modernas fazem-se nas praças. A primeira medida de qualquer regime que aspire sobreviver é acabar com as praças, rotundas e avenidas — a cidade transformada num dédalo de ruas estreitas e abafadiças. Sem praças, ninguém consegue fazer hoje uma revolução. É preciso espaço para que os oponentes se vejam, se insultem, bebam um copo e, de vez em quando, para combater o frio, arremessem o seu cocktail molotov.
Vai-se hoje para a revolução como dantes se ia à discoteca: para ver e ser visto. As praças são locais in. A multidão alinhada e a cantar, com bandeiras e cartazes, semelha a espaços o Rock in Rio, com palco e aparelhagem de som. Em dias de revolta, aparecem as cadeias internacionais de TV. As pessoas gostam daquela ideia chique de "fazer parte da História" e, por isso, perseguem nestes dias dois objectivos fundamentais: primeiro, tirar uma selfie para o Facebook, com as chamas em fundo, e depois, se for possível, mudar o regime — nem que seja para que tudo fique na mesma, como naquela máxima consagrada d
o Príncipe de Salina, personagem de Lampedusa.   
Nós, se quisermos pôr Portugal no mapa, não vamos lá com surfistas e canhões da Nazaré. Precisamos de fazer também a nossa revolução. Talvez no Terreiro do Paço. Se não pudermos desunir os manifestantes em pró-russos e pró-ocidentais, dividimo-los em solteiros e casados, como nos jogos de futebol amador. O que importa é que a CNN cubra o espectáculo.

IDEIAS INOVADORAS

 
Há mais de 50 anos, o governador do Estado brasileiro do Paraná, Moisés Lupion, criou uma campanha para aumento da receita fiscal chamada "Seu Talão Vale um Milhão". Os contribuintes eram incentivados a pedir as facturas para se habilitarem a um sorteio de um milhão de cruzeiros.
A campanha provocou o famoso episódio da Guerra do Pente. Um tenente da polícia de Curitiba comprou um pente de quinze cruzeiros e exigiu a factura ao comerciante libanês Ahmed Najar. Os dois discutiram (ou melhor, brigaram) e o comerciante partiu uma perna ao cliente. Foi o início do conflito. Dezenas de lojas de árabes e judeus foram vandalizadas. Ainda o primeiro sorteio não se havia realizado e já a iniciativa inovadora rendera alguns mortos, feridos, lojas destruídas e os tanques do exército nas ruas.
E perguntam vocês: onde militava Moisés Lupion, esse génio da inovação tributária? Ora, ora, que pergunta mais parva. Militava no PSD (Partido Social Democrático), fundado logo após a II Guerra Mundial sob a influência de Getúlio Vargas.
Lupion acabou os seus dias no Rio de Janeiro, desenganado da política, mas queimado do Sol e de umas acusações de corrupção e desvio de dinheiros públicos. Acontece aos melhores.

A DESGRAÇA DA EMIGRAÇÃO

No tropel de estrangeiros que tombou sobre Londres, Paris, Luanda e outras cidades, os nossos patrícios entraram de inscrever-se numa quota desmarcada. Nos últimos anos, trilharam de roldão vários países: uma vaga tão alta como as que têm ameaçado a nossa costa.
A emigração é sempre dolorosa. Não há "emigrações boas" e "emigrações más", nem "emigrantes qualificados" e "emigrantes desqualificados". Toda a emigração é uma perda, uma incerteza, uma lágrima de despedida, um vazio deixado por quem parte — uma saudade de pedra.  
A emigração dos últimos anos, agravada pela crise demográfica, é um derrame sem retorno. Muitos dos novos emigrantes partem de vez. São jovens, hão-de casar por lá, ter filhos, chamar a outra rua a sua rua — passam bem sem o fadinho e o bacalhau. De crianças já viam a MTV e comiam sushi. E quem cresce a ver a MTV e a comer sushi adapta-se a qualquer país e porcaria.
Na mão, a colher de pedreiro ou o diploma universitário, por vezes ambos — e aí vai a nova leva lusitana, numa imitação dos avoengos, que demandaram as sete partidas do mundo, fiados na força do braço e na coragem de afrontar a vida onde quer que seja. O trabalhador português encasou-se por toda a parte: cavou nas granjas, mourejou nas fábricas, construiu nas obras, serviu nos hotéis e restaurantes. A fita prossegue ainda agora, com malas de cartão ou tróleis da Samsonite, para júbilo dos adeptos do determinismo. É triste que um português para safar-se tenha de buscar outra terra. E que, por vezes, se exceda lá fora no empenho que lhe minguava em casa. Já o exprimia com observação certeira D. Francisco Manuel de Melo: "Isto têm os portugueses que fora da sua pátria se estremam até mais não".
Os comentadores modernos, para amenizar o drama, enroupam o fenómeno de uns agasalhos eufemísticos. Chegam a descobrir vantagens no êxodo. Asseguram-nos que, no regresso, os emigrantes vêm melhores. Parece que agora já saem "qualificados" e regressam, então, polidíssimos e carregadinhos de saber. A tese imbecil assenta na ideia de que um bruto, ao emigrar, melhora. De bruto, passa a demiurgo, sobretudo se amealhar umas massas. Troca a sardinhada pelo foie gras de pato. Vai de bigode e pêlos no peito, mas regressa depilado — e a cheirar às fragrâncias do Faubourg Saint-Honoré. Para esses palermas, o dinheiro é a pedra filosofal que, ao simples toque, transforma o patego em pensador. Assim, um bruto com dinheiro é melhor que um bruto sem dinheiro. Quem não estiver bem, mude-se, emigre — porque emigrar faz bem ao bolso e ao espírito.
Como sou um tipo de má índole e feitio pessimista, acho precisamente o contrário. Um patego com dinheiro é ainda pior que um patego sem dinheiro. Onde havia um pobre parolo passa a haver um parolo de Porsche e Rolex. A riqueza amplia a dimensão da parolice. Já o topara Camilo, quando escreveu que em Portugal os pobres de espirito são todos ricos de matéria.  
O que está em curso é a desagregação do país e do seu tecido social. Os emigrantes das gerações anteriores, coitados, trouxeram-nos o azulejo amarelo das moradias, os cães de loiça nas portadas e um sem-número de ideias que aprenderam lá fora — e que logo nos recomendaram para salvação da Pátria em risco. Mas, apesar de tais tolices, eram e nunca deixaram de ser portugueses. Já os que partem agora, duvido que o sejam hoje, quanto mais no regresso, se houver regresso.
Somos a única nação que assiste indiferente ao seu próprio fim. De formato rectangular, temos o feitio exacto de um caixão. Nada de flores, que eu não gosto. 

LIVROS & MULHERES (XXI)

A LINGUAGEM INCLUSIVA




Os meus amigos insistem em enviar-me mensagens de conteúdo pornográfico. A última trazia em anexo o Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública. Ganchou-me desta vez a curiosidade e pus-me a lê-lo com quatro olhos e raciocínio a dobrar. É um documento afectado e ridículo, trinta páginas a encastelar asneiras sobre asneiras.
Propõe que se escreva "pai e mãe" em vez de "pais", e "trabalhadores e trabalhadoras" em vez de apenas "trabalhadores". Incentiva o emprego de barras para economizar espaço: "o/a doente", "o/a estudante", "o/a funcionário/a". Chega ao disparate de sugerir se escreva "a pessoa que requer" em vez de "o requerente". (Desconheço a autora. Sei que, na fúria de regulamentar o progressismo, deslembrou à senhora que isso de escrever "pais e mães" em vez de "pais" discrimina os gays co-adoptantes.)
Por mim, aceito desde já que se passe a utilizar sempre o género gramatical feminino para designar o conjunto dos homens e mulheres. Prefiro isso a mutilar a língua com golpes de parênteses, barras e excreções.
Deixem o idioma em paz! Abundem na co-adopção, no défice, nas praxes académicas e nos 85 Mirós. Desempenhem-se lá dessas magnas questões com o brilhantismo habitual, mas deixem sossegada uma língua velha de séculos, que sobreviveu precisamente por não ter de cangar-se ao peso de regulamentos, comissões e guias. 
Tanto patriotismo aí todos os dias se desbarata em génios e comentadores, e nenhum se move em favor da língua materna. Um ror de movimentos, até do foro político, para defesa dos animais em perigo — e ninguém acode à língua maltratada e às palavras em vias de extinção. Digam-me em verdade se há algum país do mundo, do Vietname à Islândia, onde assim se tripudie sobre o idioma. De dia para dia se sente a introdução de mais uma barbaridade, dentro em pouco repetida por todas as bocas e martelada em todos os teclados. E no meio deste desconcerto glótico, andaram estes zeros nomeados milhões a escrever um Guia para a "linguagem inclusiva" [sic]. Temos um idioma que ignoramos, talvez o mais rico e opulento, reduzido agora a 200 vocábulos mal-amanhados. O que se ouve nas televisões e lê nos jornais há muito deixou de ser português. É uma mixórdia mal servida. O português verdadeiro é riquíssimo. Isso de não há palavras que descrevam é muleta de quantos ignoram o manancial da língua. Não sei o que pensam os meus amigos destes guias. Razoáveis talvez lhes pareçam, mas eu não me fico. Maltratar a língua dói-me e, assim doído, raivo da ignorância geral que a mutila.

ENTREVISTA COM EÇA DE QUEIRÓS


Que o traz de volta a Lisboa?
De cem em cem anos, gosto de passar por cá. É o bastante, de cem em cem anos, porque isto está sempre tudo na mesma. Gosto de passear pelo Chiado e admirar, tão comovido como o Cruges, o arvoredo que ainda subsiste, os meus cafés, as minhas ruas, os meus restaurantes.
Como encara a literatura portuguesa contemporânea?
Encaro-a de soslaio. O senhor é crítico?
Não, felizmente não sou crítico: sou criticável. Mas olhe que críticos de Eça é o que não falta por aí...
Eu sei. Ando na peugada de dois ou três que escrevem os maiores disparates sobre mim e a minha obra. Quero dar-lhes umas bengaladas. O senhor saberá porventura onde mora a D. Maria Filomena Mónica?
Não sei.
E o Carlos Reis?
Também não. Lamento.
Não lamenta mais do que eu…
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve: o Ega, de Os Maias, é o Eça?
Que disparate! Onde colheu tal ideia estapafúrdia? O João da Ega nem as Memórias de Um Átomo conseguiu terminar. Eu, felizmente, deixei obra publicada. Se alguma das minhas personagens tem muito do que eu fui e bastante do que eu desejaria ter sido é o Gonçalo Mendes Ramires. Logo no início da Ilustre Casa vêmo-lo em torturas de escritor na velha livraria da Torre, clara e larga. Mais adiante, aí o temos afeiçoado às ceias e bacalhoadas festivas, que eu tanto apreciei e tanto mal me fizeram. O pobre era obrigado a recorrer à água alcalina, que eu tive de beber toda a vida. Quando o Gonçalo, sempre à court d’argent, combina o arrendamento da Torre com o tremendo José Casco e, depois, sucumbindo à tentação de mais dinheiro, acaba por arrendá-la ao abastado Pereira da Riosa, acredite que aí temos um belo exemplo de como eu reagiria em situação idêntica reflexo natural das horrendas angústias financeiras que me atormentaram algumas vezes. É certo que o João Gouveia aparece no fim do livro com aquele estúpida tirada em que compara o Gonçalo a Portugal. Foi o bastante para a crítica fantasiar sobre o significado alegórico de cada palavra e gesto do fidalgo. Se o Gonçalo tem feições retintamente portuguesas é porque eu também as tenho de facto. Foi uma estupidez, aquele final.
Também não foi muito inteligente, porque inverosímil, armar de repente em colono africano um senhor que padecia do fígado e tinha de recorrer com frequência a sais de frutos e água de Vidago.
Tem razão, meu caro amigo, tem mil vezes razão.
A sua galeria de personagens, contudo, é uma das mais notáveis, talvez mesmo a mais notável da ficção portuguesa. O Gonçalo Ramires, o Teodoro, o Jacinto, o Ega, o Dâmaso…
Ah, o Dâmaso… Era um grande patife! Mas olhe que muitas das figuras de hoje vestem pelo figurino do Dâmaso.
Prosseguindo na sua vasta galeria de personagens: o País está atulhado de Acácios, não acha?
Concordo consigo. Foi personagem ineficaz, o meu Conselheiro Acácio. Completamente ineficaz. Ninguém retirou dele ensinamento algum. Estes tipos estudaram-no, esmiuçaram-lhe o moral e o físico, as ideias e os gestos, mas de facto não reparam que é dele, sem tirar nem pôr, a seriedade compenetrada com que distribuem honras e títulos uns aos outros e a todo o momento. Nunca assistiu a uma cerimónia do 10 de Junho? Meus Deus, quantos comendadores! E todos de uma mediocridade rara. Há dias até um praticante do football foi condecorado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Acredite, o meu Acácio ao pé desta gente bota figura.
E vários políticos actuais parece serem a reprodução fiel do seu Alípio Abranhos…
O Conde d’Abranhos só foi publicado na década de 20 do século passado. O Ramalho Ortigão enviara anos antes de falecer o manuscrito da obra ao meu filho José Maria, que depois a reviu e mandou publicar. Dizia o meu filho, acertadamente, que o livro fora urdido pela imaginação do pai mas que, por aqueles tempos, três ou quatro décadas volvidas, a realidade se arriscava a ultrapassar a ficção. Por isso, apressou-se em editá-lo. Antes que fosse tarde. Escrito hoje, nem ficção seria!
Talvez fosse a biografia não autorizada de quantos sardanápalos infestam os ministérios e o Parlamento.
Talvez. O Parlamento, então, é local horroroso. Uma corja a linguajar politiquice. Tanta palavra despendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de água disparatados, para ficar sempre tudo igual. E o público, que vai ele fazer para as galerias? Não compreendo essas pessoas: uma multidão desocupada e ociosa, que não vai lá pelo gosto da política, nem pelos interesses patrióticos. Vai apenas para desfrutar os contendores, rir-se deles, apupá-los e, o que é pior, perverter-se e desmoralizar-se no contacto da corrupção. Vai ver a maledicência dilacerar as reputações, como as feras nos circos romanos dilaceravam os mártires.
Ou como os bons costumes são dilacerados nos seus romances, carregadinhos de vício, adultério e incesto.
Eu sei. Arrependo-me de ter mergulhado tão fundo no lodaçal realista. Pintei a Amélia, de O Crime do Padre Amaro, e a Luísa, de O Primo Basílio, com a paleta de cores que me chegava de França. Ficaram criaturas medíocres.
Por que razão nunca se aventurou nos domínios da poesia e do teatro?
Nunca tive talento poético. E quanto a teatro, embora haja tentado alguma coisa, é arte que em Portugal nunca se viu. Ontem como hoje, vai-se ao teatro passar um pouco a noite, vai-se para se poder dizer que se foi ou, quando há um drama pungente, para rir e se ficar de bom humor. Não há, nem nunca houve bons dramaturgos só maus tradutores. E desde logo moços que ficaram reprovados no exame de Francês, traduzem. Onde está vous põem V. Exa., e este esforço prodigioso de invenção consumiu em Portugal a força de várias gerações literárias. Além disso, a malta do teatro é toda bon chic, bon genre.
Verifico que continua a insistir nos francesismos.
Às vezes, é por blague (Lá está, mais um...) Mas, por dentro, acredite que sou um português de sete costados. Mais português do que muitos contemporâneos seus que, apesar de me criticarem os francesismos, ficaram em três ou quatro lustros completamente inglesados. Só falam de hardware e de software, fazendo os devidos backups; aplicam no rosto after shave, vestem sportswear e compram carros com airbag. Dizem-se marketeers, brokers e branch managers. Olhe que os cartões de visita do Dâmaso nunca chegaram a tanto!
Já leu o Acordo Ortográfico?
Não me irrite, meu caro amigo. Isso não me interessa para nada. Meia dúzia de académicos a babarem-se de vaidade e aí temos uma língua nova.
Como vê o futuro de Portugal?
O País também não me interessa. Isto sempre foi um sítio, nunca chegou a ser um País, muito menos uma Nação. Portugal, politicamente, não tem hoje lugar na civilização. Está desempregado. Vive de esmolas, de subsídios, de fundos chamados estruturais. Os nossos deputados europeus, em Estrasburgo, não têm nada para fazer, nem podem fazer nada. Entretêm-se a escrever blogues para não morrer de tédio e sensaboria. Como eu, outrora em Havana, em Newcastle, em Bristol, em Paris. Sobretudo em Paris, onde fiz uma vida, não direi de cenobita, mas de petit bourgeois retiré.
Perante um quadro tão pessimista, que recomenda às mais jovens gerações de Portugal?
Sigam o exemplo que eu e o Ramalho demos com As Farpas. No estado em que se encontra o País, os homens inteligentes não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele devem farpeá-lo. As Farpas foram isso mesmo: a pilhéria, a ironia, o epigrama, o ferro em brasa, o chicote postos ao serviço da revolução.  

LIVROS & MULHERES (XX)

WALLACE STEVENS

A poesia é sempre uma forma de solidão. Wallace Stevens levou uma vida pacata de administrador de uma seguradora em Hartford, no Connecticut. Integrou o lote daqueles literatos discretos e de fato escuro, com Kaváfis e Pessoa, empregado de escritório na Moutinho & Almeida. Embora cada um a seu modo, todos eles foram homens solitários.
De Stevens não abundam registos de vida social. Só quando morreu, em 1955, é que os colegas descobriram que naquele gabinete trabalhara um dos maiores poetas modernistas do século XX.
 
The Place of the Solitaires

Let the place of the solitaires
Be a place of perpetual undulation.

Whether it be in mid-sea
On the dark, green water-wheel,
Or on the beaches,
There must be no cessation
Of motion, or of the noise of motion,
The renewal of noise
And manifold continuation;

And, most, of the motion of thought
And its restless iteration,

In the place of the solitaires,
Which is to be a place of perpetual undulation.

O Lugar dos Solitários

Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de perpétua ondulação.

Quer seja em pleno mar,
Na escura e verde nora
Ou nas praias,
Que nunca cesse
O movimento, ou o som do movimento,
A sucessão desse som
E o seu múltiplo prolongamento.

E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração,

No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de perpétua ondulação.

[versão B.O.S.]

TEÓFILO BRAGA, OUTRO "BLUFF"

Escrevo estes textos, não por embirração, mas apenas para distinguir entre a genialidade e a fancaria. Separar o trigo do joio é a tarefa. A cultura nacional perde por nivelar valores desiguais. Teófilo Braga, por exemplo, embora alçado a grande talento, é um dos maiores bluffs da academia portuguesa. Não é de estranhar. Em Portugal a mediocridade recompensa-se com faustos e laudatórios. Mas impressiona hoje ver com nome imaculado este tipo tão medíocre, intrujão das dúzias e zote genial da literatura postiça.  
Poeta medíocre e ficcionista falhado, para desgraça dele e nossa meteu-se a historiador da literatura. Foi mau e burlão em tudo e sempre numa prosa reles, deslavada e caótica. Agarrou-se ao positivismo e ai de quem não perfilhasse as suas positivices. Como o Grande Oriente faz milagres, chegou a Presidente da República.  
Entre os seus contemporâneos, gozava da mais sólida reputação de apropriador dos bens alheios para os seus incontáveis livros. Quiseram endireitá-lo, a tempo e horas. De tudo usaram, do bom conselho à crítica justa, e nada lograram refinou. Herculano em 1869 classificava já o mal de insanável prognóstico de sábio. E Camilo, quando a tortura da doença lhe dava os últimos sacões, chegou a levar a mão à cabeça com gesto trémulo e exclamar: "Meu Deus! Sinto a cabeça vazia como a do Teófilo Braga".
Quem lhe descobriu a careca em livro foi Ricardo Jorge, esse sim, um dos grandes prosadores portugueses, além de médico consagrado, a quem Teófilo surripiou páginas e páginas. Quando quis escrever o perfil biográfico e crítico de Francisco Rodrigues Lobo foi-se ao trabalho de Ricardo Jorge e não teve mais que estender a mão e deitar na abada. Fontes, datas, dados, citações, todo um material penosamente carreado e lavrado ao longo de anos de estudo árduo, estava ali às ordens. Levou o que quis e lhe conveio. Teófilo nunca cita o título nem o autor do trabalho expropriado. Não admira. De plágios e contrafacções destas se fez a obra inteira do grande republicano.
Mas não roubava só em Portugal. Nisso de esbulhar tinha ele uma vocação universal e irredentista. Ao escritor e crítico brasileiro Sílvio Romero plagiou e falsificou boa parte dos Contos Populares do Brasil, o que fez explodir a vítima num protesto formidando, publicado em 1887, sob o título Uma Esperteza: Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga.  
O lusófilo inglês Aubrey Bell, que lhe topou o engenhoso método de criação, lavra crítica certeira: "It would be indeed a miracle if Dr. Theophilo’s Braga works were as accurate and as valuable as they are voluminous". ("Seria na verdade um milagre que as obras do Dr. Teófilo Braga fossem tão cuidadas e valiosas como são volumosas.")  
Trindade Coelho, talento de primor moderno e alma antiga de espartano, apresenta este rasgo: "(…) o sr. Teófilo [Braga] tem propagado nos seus livros tantas verdades como mentiras (é favor), e que pelo toca a intenções de trabalho crítico, todo o seu desejo é atirar com os outros ao meio do chão… a fim de ficar em evidência apenas ele (...)"
Assim foi Teófilo. Oliveira Martins, Antero, Camilo, Junqueiro a todos abocanhou porcamente, por não reconhecerem a sua primazia. Sonhou-se estatuificado como Camões, com uma roda de oitocentistas na peanha.
Crítico medíocre e arlequim das letras, o seu bota-abaixo atingiu Vieira e Bernardes, que trata abaixo de cão. Apruma-se de braço togado a proferir o julgamento do jesuíta, que para ele não passa de um "retórico vazio" um homem que não "cooperou" nas "grandes sínteses filosóficas" do seu século, "o Baconismo e o Cartesianismo". Tal qual. Deprecia, como untuoso e monótono, o estilo de Bernardes. E zurze os dois por terem exercitado a linguagem sobretudo em assuntos religiosos. Eis o crime, como se num quadro de Rafael ou de Rubens a qualidade mística empanasse o brilho da pintura.
Fora o que é roubado, a sua obra constitui a mais vasta enfiada de asneiras e mentiras. Procure-se em qualquer página. Cada cavadela, cada minhoca. Erra datas, deturpa documentos, anacroniza factos, confunde personagens, chorrilha desconchavos: os pés pelas mãos e as mãos pelos pés cruzam-se acelerados nesse tear de sandices.  
A teofilíssima criatura, mestrão das letras, chega a confundir Francisco Rodrigues Lobo com Fernão Rodrigues Lobo, o Soropita. Por pouco que escrevesse, seria sempre de mais. Certo dia encontrou num jornal uma fantasiada epístola do helenista Aires Barbosa, escrita de Esgueira na primeira metade do século XVI. A frase era à légua e sem disfarce de linguagem moderna, com uma crítica aos galicismos em voga no século XIX. Pois escarrou-a no prelo como autêntica, servindo-a logo com aquele sabido molho de pedantaria. Um asno completo. Repousa, com toda a justiça, no Panteão Nacional.  

LAVOURA MODERNA

Depois de nos dizer que o País ainda em crise precisa de massa cinzenta e de investimento como de pão para a boca, o ex-governante sabido dá de frosques para o FMI ou o Goldman Sachs. Lembra-me aquele lavrador que, entre a vaca e a mulher, ambas em trabalho de parto, largou do quarto para o estábulo porque a vaca sempre lhe dava algum rendimento.

A ESCOLINHA

Corre por aí um debate morno sobre a escolaridade obrigatória. Como de costume, ninguém tem razão. À uma, escapa aos proponentes que a caixa de velocidades do progresso não admite marcha-atrás. Não entendem, à outra, os seus opositores que isso de ser obrigatório o exercício da liberdade revela uma contradição nos termos.   
Desde que se inculcou a ideia de que pela Educação (com maiúscula, como eles gostam) é que vamos, o caminho ficou definido. A Educação (lá está, com E grande) transformou-se em desígnio nacional, meta do regime, a paixão de Guterres e dos homens sábios.  Ninguém quer discutir a velha questão de saber se aprendemos porque somos ricos e livres ou se, pelo contrário, somos ricos e livres por termos aprendido. Adoptámos, quase sem exame, a tese de que a base do desenvolvimento é a escolinha, a Educação (com maiúscula, s.f.f.), a escolaridade obrigatória, ontem 9 anos, hoje 12, amanhã talvez 15, a seguir 20, depois 30 ou 40, que isto do progresso nunca pára e não queremos ficar aquém da Alemanha e da França, isso nunca.   
Sabemos, desde Aristóteles, que a sabedoria não é condição da liberdade, mas consequência. O homem não se liberta pela sabedoria: procura a sabedoria porque é livre. Esta não é promessa, mas exercício de liberdade. A sabedoria é, pois, o horizonte mais nobre de expressão da liberdade humana.
Enfim, o contrário exacto da linha vigente. Quem quiser debater o assunto com profundidade filosófica e rigor metafísico, pode começar por aqui. Quem quiser apenas ganhar votos, ter o nome limpo nas redes sociais e ser considerado inteligente, deve defender a escolinha obrigatória, a Educação (com maiúscula, sempre com maiúscula), o ensino cívico e dos "valores da cidadania". O progresso, meus amigos, é um autocarro sem travões leva tudo à frente.

TEENAGE LOBOTOMY

EGAS MONIZ, UM "BLUFF"

Em século e pico, o génio nacional arrecadou um Nobel e meio. Inteiriço e completo é o de Saramago. O meio resultou do prémio dividido entre o vencedor português e um fisiologista suíço. O nosso chamava-se António Caetano de Abreu Freire. Assim o registaram de nome completo. Isso de Egas Moniz foi a alcunha que o neurologista colou com cuspo ao apelido, para convencer o populacho de que descendia em linha directa do aio de D. Afonso Henriques.
É de andar aos tombos a justificação genealógica que apresenta em A Nossa Casa. Qualquer genealogista só de fim-de-semana, meia hora de leitura após o almoço dominical, se rirá a bandeiras despregadas das pretensões fidalgas do facultativo.   
A tese mais verosímil adianta que o homem, quando estudante, fez no Teatro Académico de Coimbra o papel de Egas Moniz. Deram os colegas a chamar-lhe Egas Moniz. Ele gostou e adoptou-o, chamou-lhe um figo e pôs-se a imaginar uma linhagem varonil que vinha, pelos séculos fora, de Entre-Douro-e-Minho até à freguesia de Avanca.
Como é costume em Portugal, foi tentado pela política. Durante a Grande Guerra exerceu de Embaixador em Espanha, o destino mais seguro para o falso neto de Egas Moniz. Foi bem recebido. Nem precisou de se apresentar descalço e de corda ao pescoço.    
Pioneiro da sexologia lusitana, editou A Vida Sexual, livrinho pedagógico e recomendável onde aplica à intimidade de homens e mulheres o que observava nos bovinos da Beira Litoral. E como um mal nunca vem só, inventou a leucotomia, técnica bárbara que a ele lhe deu fama e aos doentes sofrimento e morte. Quando, em 1949, recebeu a metade do prémio já estava paralítico, de cinco tiros que levara de um paciente que discordaria decerto do júri sueco quanto ao valor daqueles métodos curativos.   
Conta Tomás de Figueiredo, então notário em Estarreja, que aí por meados da década de 40 do século passado se entreviu com o Abreu Freire, que pretendia um documento oficial, que por páginas e páginas minutara, num estilo calisto e medíocre. Acrescentava Tomás que lhe ficou do neurologista a maior figuração que é possível da vaidade feita carne. E antes do meio Nobel! Pretendia ele lavrar um testamento, mas propunha condições impossíveis à luz do Direito e do bom senso. Deixava de raiz, e a herdeira podia assim vender ou gerir como quisesse, mas por morte dela a herança teria aplicações que impunha, destinando cadeira por cadeira, caco por caco.
A casa ficaria para museu. E regulamentava o museu, o seu funcionamento, os horários, o preço dos bilhetes. Diz Tomás de Figueiredo que não fez tal testamento, por nulo, mas houve quem o fizesse, vergado pela autoridade, de rabinho entre as pernas.
Mais tarde, já inchado pela meia dose de Nobel, promove ele, até por cartas, que em Avanca lhe alcem um monumento. E lá ficou ele todo, inteiro e majestático, na Quinta do Marinheiro o porte altivo, a cabeça de bronze, o capachinho. Um dos grandes bluffs da cultura portuguesa. 

PANTERA AO PANTEÃO

Almeida Garrett, Amália Rodrigues, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, Humberto Delgado, João de Deus, Manuel Arriaga, Óscar Carmona, Sidónio Pais, Teófilo Braga. Já os contei: são dez. Ora, o Eusébio tem lugar em qualquer onze

A NOITE (QUASE EPITÁFIO)

Amo a noite, toda a noite,
desde as dez à alvorada. 
Amo a noite, sim, a noite,
amante, amiga e amada. 
Amo os dias só à noite
e quando, enfim, me extinguir,
hei-de sumir-me na noite
prà noite me consumir.
 

UM PAÍS DE EXCEPÇÃO

A PÁTRIA EM CHUTEIRAS


 
O meu sentido da Europa e de Portugal é distinto do comum. A minha Europa não é a comunidade económica nem a união política. Das teses correntes sobre Portugal digo o mesmo.
A minha ligação à Europa vem dos poemas de Homero e da tragédia antiga, funda-se no pessimismo heróico nascido nas margens do Egeu e nas lendas dos ciclos indo-europeus, prossegue no espírito das Cruzadas e nos romances da Bretanha, e vive também nas histórias de amor e guerra, grandeza e morte, que foram contadas por Shakespeare, Calderón de la Barca e Corneille.    
Do mesmo modo, a minha ligação a Portugal, uma ligação física, carnal, palpável,  tem a ver com a espada do Rei-Fundador, a abóbada da Batalha, o horizonte de Sagres, as páginas de Vieira, Bernardes e Camilo, a voz da Amália e o Eusébio.   
Eis os signos. Pode parecer estranho, mas as actuais problemáticas, como dizem os parvinhos, têm o condão de me reduzir à mais completa indiferença. Saber se a tróica fica ou vai embora, discutir o modelo social europeu e a dimensão do Estado, polemizar entre esquerda e direita, serão actividades seríssimas e estimulantes  mas só as pratico por dever social, como quem fala do tempo com a vizinha de baixo. Sou europeu da cabeça aos sapatos e português de uma só peça. Mas, nascido  assim com feitio enviesado e de certa telha anarquista, nunca admiti por símbolos nacionais o hino horroroso e ainda menos o trapo verde e tinto, bandeira a martelo de um país de bêbados.
Foram sempre outros os meus símbolos. Ora, a julgar pelas declarações de ontem e hoje, pouca gente entendeu a dimensão de Eusébio. Para uns, parece que foi um futebolista extraordinário  e entretêm-se em comparações disparatadas. Certo tolinho, movido de inveja, capitula-o de homem bom, mas inculto. Tem razão. Faltou-lhe certamente ciência para criar a Fundação Eusébio e ficar a viver por conta do Estado, sentado de babete à mesa do Orçamento. Houve outros, mais chegados à verdade, que o classificaram de imortal. Mas imortal já ele era havia muito, estatuificado em vida, o que é raro entre nós. Eusébio corporizou um daqueles mitos que as nações históricas geram para assegurar a sua existência. Foi a última grande figura portuguesa. Depois dele, quem?

UM DESEJO PARA 2014

Que os governantes aprendam de vez que a expressão ajuda externa é sempre um paradoxo. Ou somos nós, ou nunca seremos.

LIVROS & MULHERES (XVIII)

MARIDOS

A gente cria o costume e gosta mais por costume que por outra coisa. Que outra coisa é que podia ser. Depois, a gente afeiçoa-se, mas afeiçoa-se já doutra maneira, e são uns filhos grandes que casam connosco.
Outros acham que a gente há-de gostar deles por isto ou por aquilo. Ora! A gente nem sabe porque gosta […]
Sempre o mesmo homem, senhor juiz — o mesmo homem todos os dias, com o mesmo corpo e a mesma maneira! Todas as noites, senhor juiz, e na mesma cama — nem a cama muda ao menos. E aquilo ao fim de tempo já não era viver, nem coisa que se parecesse — era uma coisa entre comer para não ter fome e fazer o serviço da casa... Se os homem soubessem o que custa a aturar! Se soubessem o nojo que a gente tem por eles cá dentro quando está encostada a eles!
E eu, senhor juiz, não tinha outro remédio senão matá-lo para estar bem com a minha consciência e com a Igreja.
Foi por isto, senhor juiz e senhores jurados, que eu matei o meu marido.  
 
[Fernando Pessoa, O Mendigo e Outros Contos]

LISBOA, CAPITAL DO LIXO


 
Lisboa merece, sem favor, o título de capital mais porca da Europa. A Torre Eiffel está para Paris como para Lisboa o lixo a pontapé nas ruas e os grafitos nas paredes. A fama vem de longe. Contam os olissipógrafos que era Portugal senhor do mundo e Lisboa recortava-se um  dédalo de ruas estreitas e fedorentas, com os dejectos lançados das janelas, os cavalos a patinhar na lama imunda, picados de mosquitos e polvilhados de moscas e as escravas negras em largada pela Rua do Conde abaixo, levando na cabeça os baldes de porcaria que despejavam no rio. Mais tarde, já no século XVIII, o Chiado só se fez Chiado depois que Pina Manique encanou as caleiras dos dejectos públicos que deslizavam a céu aberto do Alecrim para as praias da Ribeira.
Mantém-se, nos nossos dias, o fétido cenário, que atrai e diverte a turistada europeia. É mais barato voar para Lisboa do que para Nova Deli. E a comida melhorzinha, graças a Deus  mais saborosa e menos picante.  
A greve transformou a cidade numa lixeira nauseabunda, ante a inércia da autarquia. Nestas condições, normal seria que a jornalice espaventasse o escândalo, matéria de higiene urbana e saúde pública. Dorme, porém, descansado o presidente da Câmara. O homenzinho ajunta ser socialista a ser monhé, duas qualidades fundamentais que lhe garantem a imunidade jornalenga.
O nosso porquinho-da-Índia não denota, na verdade, o mínimo melindre. É preciso relativizar estas coisas. Ele sabe que, no que toca a limpeza, Bombaim ainda é pior. Embalde pedem, pois, os munícipes responsabilidades. A imprensa não quer enfarruscar as ambições políticas do cavalheiro. Lisboa já lhe fica curta nas mangas e inodora nas narinas. Tarde ou cedo, há-de perfumar de lixo o país inteiro.

GOULD E BACH


Nesta quadra, ofereço aos meus leitores a arte de dois génios: Glenn Gould a tocar o Concerto n.º 1 para piano de Bach. Ambos certificam a existência de Deus.

Feliz Natal!

ALCIDES E O BURRO

Alcides era um velho pastor beirão. Desde que enviuvara, havia dez anos, vivia acompanhado de Moreno, um jumento fiel. Dez anos assim. Alcides e o burro, o burro e Alcides. Adoravam-se. Fora amor à primeira vista. O pastor gostava de rememorar o dia em que se encontraram um com o outro e os dois com a vida. O animal retribuía-lhe o afecto. Lembrava-se embevecido de que Alcides, na feira de gado, o distinguira no meio de um regimento de azémolas e lhe dera uma palmada rija no lombo (Belo animal! Quanto custa o jerico?) Ah!... A mão suave de Alcides. Nem comparação tinha com a de Tadeu, o vendedor, que se lhe escanchava em cima e o chicoteava continuamente com a soga da rabeira. Que diferença! Por Alcides, nem sabia o que era um estábulo. Nunca lhe batia: o castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeição mal-humorada. Entendiam-se pelo olhar, como qualquer casal moderno e de boas avenças.
Um ano passou, outros anos passaram. E entre os dois a paixão foi crescendo a ponto de se tornarem inseparáveis. Habitavam a mesma casa, dividiam a mesma mesa, dormiam no mesmo leito. E isto se bacorejava aldeia fora, nas conversas intriguistas dos vizinhos e das beatas: Alcides e o burro viviam em união de facto. Por isso, e muito justamente, o pastor lamuriava-se de não poder deduzir os gastos de Moreno, alimentado a pão-de-ló, nas contas anuais do IRS. Tal discriminação indignava-o. E indignado ficou também o burro quando internaram o dono no hospital da vila (maldita cirrose…) e lhe interditaram a ele, bicho fidelíssimo o acesso à enfermaria. Ao pobre animal, doía-lhe no peito que não tivesse os mesmos direitos de visita que o marido ou a mulher de outro doente. Dias depois, como o pastor morresse, chegou de Lisboa uma parentela ignota que, a dois tempos, tratou do funeral e das partilhas sem que o bicho amantíssimo pudesse herdar o casebre  ou a horta. Seria o mínimo, depois de uma vida a dois.
Errou o jumento, choroso, pelas ruelas da terra, alijando a dor da perda. Dobaram-se os meses, mas nunca conseguiu voltar a casa. Olhou com indiferença as luzes festivas e um burro de gesso no presépio da praça. Tresnoitou-se de lameiro em lameiro, contemplando as estrelas companheiras leais dos solitários. Não passou fome, tanto que se alimentava dos tojos que despontavam no monte, mas definhou consideravelmente. Quando entrou o Inverno, frio e chuvoso, Moreno estava um palito. Na noite de Natal, apareceu morto no adro da igreja. Ainda agora se diz na aldeia que morreu de amor.

LIVROS & MULHERES (XVII)


Marguerite Yourcenar a ler em casa, em 1986, um ano antes da sua morte.

A secção Livros & Mulheres costuma reincidir por gosto e vocação em mulheres mais novas e menos enrugadas. Abre hoje excepção para a escritora belga de expressão francesa, que morreu neste dia há 26 anos.
Na sua obra, avulta o livro Memórias de Adriano, um romance histórico magnífico, quer como documento, quer como monumento de arte literária.
A Obra ao Negro oferece-nos um espantoso fresco da Europa do século XVI e O Golpe de Misericórdia conta-nos de forma magistral um singularíssimo triângulo psicológico, constituído por Eric, Sophie e Conrad, com um desfecho cem por cento patético e nobilitantemente trágico, na melhor linha da nobreza intrínseca daquelas personagens.
Yourcenar revelou-se também uma ensaísta erudita e profunda. Vale a pena ler, neste domínio, Mishima ou a Visão do Vazio, A Benefício de InventárioO Tempo, Esse Grande Escultor.    
Muito azar teve a autora nos tradutores que lhe calharam em sorte para verter (ou antes: subverter) a vasta obra para português. Com a excepção de Rafael Gomes Filipe, os tradutores lusos de Maria Lamas a António Ramos Rosa nunca conseguiram transmitir o brilhantismo, o estilo, o fulgor da sua escrita.